Inteligência Artificial para educadores: perguntas e respostas (Parte 1)
Conheça as dúvidas mais comuns de professores sobre o impacto desta tecnologia

Bem-vindos a mais uma edição de IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação. Nesta edição apresentamos a primeira parte de uma série de perguntas e respostas comuns, que vão do questionamento crítico à ação prática.
Mas antes, se puderem ajuda nosso projeto, pedimos que respondam à pesquisa com os leitores. É rapidinho!
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
Nos últimos tempos, tenho realizado muitas participações em palestras, oficinas e minicursos com o tema que está em alta há pelo menos dois anos e meio: Inteligência Artificial na Educação.
A cada encontro, surgem várias perguntas e questionamentos feitos por professores e estudantes. Lado a lado, preocupações e esperanças, fascínio e receio.
Após anotar e categorizar estas perguntas frequentes, trago aqui uma compilação das que seriam minhas respostas. Longe de serem soluções definitivas, já que o campo é muito dinâmico e incerto, espero apontar os principais debates e considerações necessários para navegarmos este novo cenário.
Integridade acadêmica
Minha maior preocupação: os alunos vão usar isso só pra fazer trabalho, sem pensar... Como eu vou saber se um aluno realmente fez ou se foi a máquina que "cuspiu pronto"?
Já temos vários levantamentos, com resultados claros que complementam a percepção empírica: nossos estudantes estão usando e muito. Um levantamento com universitários no Reino Unido encontrou que 92% dos estudantes utilizam IA, por exemplo. O que nos leva à questão: como lidar com isso?
A primeira reação, lógica, seria voltar atrás. Avaliações presenciais, provas orais, proibição de dispositivos tecnológicos em sala de aula. Porém, em alguns contextos como a Educação a Distância, isso é impossível. E também encontramos o argumento de que a IA fará parte de nossas vidas, de forma que é preciso preparar as novas gerações a lidar com este novo cenário do conhecimento.
Dito isso, outra resposta seria repensar a natureza das tarefas pedagógicas, tema de nossa primeira edição. Focar não em um produto (uma resenha, um relatório de pesquisa), mas no processo. Isso exige acompanhar o desenvolvimento de um trabalho em suas etapas e também incluir momentos de apresentações.
Já elementos como originalidade, conexão com a realidade local e com experiências pessoais do aluno, tudo isso bem exemplificado, são exemplos do que a IA não pode (e possivelmente não poderá) fazer.
Por sua vez, uma análise crítica da tecnologia pode ser combinada com a abordagem "una-se ao inimigo". Um enunciado desse tipo seria, por exemplo, "use a IA para gerar um resumo deste artigo. Depois, escreva sua própria análise crítica do resumo gerado, apontando pontos fortes e fracos".
Finalmente, a metacognição, a reflexão sobre a própria aprendizagem, tem surgido como característica de atividades envolventes, com os alunos explicando como chegaram à resposta, quais foram suas fontes, qual o processo de raciocínio.
Como ter certeza se um texto foi escrito pela IA? Posso usar ferramentas de detecção?
Não há como ter certeza. Ferramentas de detecção de IA existem, mas são comprovadamente falíveis, gerando tanto "falsos positivos" (acusar um texto humano de ser IA) quanto "falsos negativos" (não detectar um texto gerado por IA). Basear uma acusação de falta de integridade acadêmica em ferramentas que não possuem uma ciência bem estabelecida também seria antiético.
Além disso, seu uso pode criar um clima de desconfiança, por não dizer paranoia. Estudantes íntegros demonstram preoucapação e recorrem a diversas táticas de "humanização" do texto para não serem acusados injustamente.
Dito isso, o próprio estilo de escrita é um indicador. Relacionando à pergunta anterior, focar o processo de produção do trabalho e solicitar ao aluno que mostre como chegou ao resultado final são mais reveladores que estes detectores.
Em termos práticos, como elaborar estas atividades "à prova de IA"?
Para começar, penso que é interessante substituir a ideia de atividades "resistentes" ou "à prova de IA" por atividades que valorizam "competências humanas únicas". É isto que está em jogo, diante da produção automatizada de textos e respostas.
Uma primeira abordagem seria a reativa, em estilo "retrô" ou "vintage". Isto é, atividades realizadas presencialmente, em sala de aula, sem acesso a dispositivos, com supervisão estrita. Porém, vejo que seria uma forma de esconder o problema e de não reconhecer como o papel da Educação está se transformando.
Por isso, uma abordagem mais interessante seria a de atividades que exijam reflexão pessoal profunda, conexão com experiências vividas e/ou análise de contextos muito específicos e locais que a IA desconhece. Por exemplo, a análise de um problema real da escola ou comunidade, acompanhada de avaliação processual e de aspectos colaborativos.
Da mesma forma, apresentações orais, debates e seminários nos quais os alunos precisem defender suas ideias em tempo real também fazem parte deste foco no processo. São atividades que valorizam competências como pensamento crítico, resolução de problemas complexos, criatividade e comunicação, que vão além da simples entrega de informação.
Recorrendo à teoria educacional, venho defendendo que precisamos nos voltar para os níveis superiores da Taxonomia de Bloom. O foco deve estar na síntese, avaliação e criação do conhecimento.
Tudo isso não é novidade nos debates sobre educação tecnológica e da educação em geral. Há décadas se fala num "paradigma emergente", caracterizado pela conjunção das abordagens holística, progressista e de pesquisa. N No entanto, é muito mais trabalhoso, custoso e desafiador de ser realizado num contexto de educação massiva.
Aprendizagem
Se a IA pode dar resposta pra tudo... como fica o desenvolvimento da leitura profunda, da escrita com a própria voz, do raciocínio lógico...? A gente não corre o risco de "emburrecer" os alunos ou deixá-los dependentes demais da máquina?
Justamente! Nos últimos tempos, um conceito tem sido bastante comentado, o "descarregamento cognitivo" (cognitive offloading), criado antes de toda esta discussão sobre IA. Basicamente, é a ideia de que ao delegarmos tarefas cognitivas para a tecnologia acabamos perdendo gradualmente essas habilidades por falta de prática.
Além disso, desde minhas primeiras experimentações com a IA Generativa percebo que um resultado minimamente significativo depende de habilidades e conhecimentos já adquiridos. Por exemplo, a escrita com auxílio de IA é muito mais uma edição, o que exige um domínio sólido de redação.
Portanto, o uso não pode ser passivo e acrítico, mas é preciso reconhecer este risco. A IA não substitui a necessidade de construir as bases de leitura crítica, da escrita argumentativa, da resolução de problemas, que precisam ser desenvolvidas de maneira intencional. O "nó" da questão seria como fazer isso diante do risco do uso indiscriminado da tecnologia.
Se a proibição não é viável, o professor e a escola acabam assumindo um papel importante de mediação. Isso inclui contextualizar e delimitar o uso da IA a situações apropriadas e não-apropriadas. Por exemplo, o uso para esquematizar ideias e superar um bloqueio de escrita não são comparáveis à substituição da autoria.
Esta mediação também envolve o conceito de metacognição, já mencionado. Por exemplo, fazendo com que os alunos reflitam sobre o que aprenderam com a IA versus o que a IA fez por eles.
Nesse debate, frequentemente, encontramos a analogia com a calculadora: ela não eliminou a necessidade de aprender Matemática, mas se tornou uma ferramenta que ajuda no aspecto repetitivo das operações, deixando espaço para o raciocínio propriamente dito.
Entretanto, é preciso ressaltar que a IA demanda mais atenção, devido à sua capacidade de gerar linguagem e conteúdo complexo. Retomando a questão do domínio: assim como aprendemos a tabuada antes de usar a calculadora, precisamos desenvolver competências fundamentais antes de usar IA como apoio.
Como equilibrar o uso de IA com métodos tradicionais de ensino? Não quero abandonar práticas que funcionam bem, mas também não quero ficar para trás.
Precisamos pensar em equilíbrio. Não se trata de uma substituição, mas de uma integração baseada em critérios e intencionalidades bem definidas.
Em primeiro lugar, manter o que funciona, práticas consolidadas como debates em sala, leitura compartilhada, projetos em grupo, aulas expositivas dialogadas e atividades práticas.
Em seguida, identificar oportunidades, pensando em como a IA pode potencializar o aprendizado ou facilitar o trabalho docente. Pode ser na diferenciação de atividades ou na devolução mais rápida de tarefas escritas, por exemplo. A questão central é sempre o "como usar" e, nesse sentido, também é preciso desfazer as expectativas exageradas.
Ao combinar abordagens, também seria possível superar a dualidade exposta na pergunta. Por exemplo, a IA pode ser utilizada para o rascunho inicial de um texto, seguindo da reescrita e a argumentação com métodos tradicionais. Contudo, o desenvolvimento de habilidades fundamentais, a interação social e experiências sensoriais são típicas da abordagem não-tecnológica.
Em qualquer caso, deve haver uma escolha consciente, no sentido de que a decisão de usar ou não a IA (e como usá-la) deve ser pedagógica, baseada nos objetivos de aprendizagem, no perfil da turma e nos recursos disponíveis. Não use por modismo, nem deixe de usar por resistência à mudança.
Como explicar para os pais mais tradicionais que o uso da IA não significa que os alunos vão "deixar de aprender" ou que estamos facilitando demais?
Com comunicação clara, transparente e focada nos objetivos estabelecidos a partir da reflexão acima. É preciso informar que, assim como outras tecnologias educacionais, a IA é um recurso de apoio. Como o livro, uma calculadora ou a própria internet, não é substituto para o esforço e o pensamento do aluno.
Nesta concepção, o foco são as habilidades. Ao contrário do que vemos no uso mais cotidiano, por exemplo a obtenção de respostas, um uso com sentido envolve o desenvolvimento das habilidades essenciais para o século XXI, como pensamento crítico (para analisar a informação da IA), resolução de problemas, criatividade e letramento digital. A exemplificação, com exemplos concretos de sala de aula, irá auxiliar a argumentação.
Esse ponto está relacionado com a preocupação dos pais sobre o "futuro" de seus filhos. Nesse sentido o uso dessas ferramentas de forma ética e eficaz também é prepará-los para o mundo que encontrarão fora da escola.
Além disso, como qualquer tipo de comunicação, é preciso considerar a via de mão dupla e abrir o tema para a conversação. Reuniões onde os pais sejam escutados a respeito de suas preocupações, em termos de benefícios e cuidados, é uma forma de estabelecer um diálogo. Já demonstrações práticas e workshops podem auxiliar os pais a compreenderem em primeira mão as potencialidades e limitações da tecnologia.
Finalmente, é necessário ter regras específicas sobre quando/como IA é permitida ou não em tarefas. Uma política institucional clara ajuda a dar sentido e a reduzir conflitos.
Currículo e conteúdo
Falam muito de IA para Redação, para Matemática talvez... Mas e as Artes? Educação Física? História? Como a IA pode realmente ser útil no dia a dia dessas disciplinas, sem ser só um enfeite tecnológico?
A capacidade da IA Generativa de produzir textos coerentes e completos acaba ocultando, a meu ver, seus aspectos mais interessantes: seu aspecto conversacional e uma certa imprevisibilidade, relacionada com sua natureza probabilística.
Dessa forma, ela pode ser utilizada em praticamente em qualquer aplicação pedagógica, desde o planejamento didático, passando pela criação de materiais didáticos e de apoio, avaliação e inclusive a gestão educacional. Dessa forma, possuem um uso geral, que independe das disciplinas.
Por outro lado, também podemos encontrar alguns usos específicos. Em História, a utilização de personas abre uma perspectiva de simulação com personagens e eras históricas. Já sua capacidade de análise de grandes volumes de dados pode ser aplicada à pesquisa documental.
No plano da inovação, a capacidade multimodal, o processamento não somente texto mas também de áudio e vídeo que os chatbots mais atuais dispõe abre possibilidades para as Artes, com a análise de obras e referências visuais. E para a Educação Física, com análise de movimentos e do gesto esportivo. Logicamente, nestas disciplinas a tecnologia não substitui a experiência corporal e sensorial tão intrínseca a elas.
Como eu encaixo o uso dessas ferramentas no currículo que já é apertado e cheio de coisas para cumprir? Precisaria um objetivo pedagógico claro, né? Não pode ser só usar por usar. Como isso se conecta com as habilidades e competências que a gente precisa desenvolver, segundo a BNCC?
Absolutamente. O uso de qualquer tecnologia, não somente a Inteligência Artificial, deve ser intencional e alinhado à proposta curricular. Embora o hype possa levar à proposta de criação de uma disciplina de "IA", seu potencial valor reside em auxiliar o desenvolvimento das competências já previstas na Base Nacional Comum Curricular .
Para maior coerência, a perspectiva é integrá-la em atividades já existentes, não como algo extra. Por exemplo, transformando uma pesquisa tradicional em um diálogo crítico com IA. Dito isso, entre os alinhamentos possíveis podemos citar:
Pensamento crítico (Competência Geral 2), peça aos alunos que analisem informações geradas por IA, com identificação de vieses e checagem de fatos.
Cultura digital (Competência Geral 5), com o uso de tecnologias digitais de forma crítica, significativa e ética, compreendendo o funcionamento básico da IA e seus impactos.
Comunicação (Competência Geral 4), utilizando a IA como ferramenta para expressar, compartilhar informações e produzir sentidos, sempre com foco na autoria e clareza.
Argumentação (Competência Geral 7), com a prática do uso de argumentos e falácias por meio de prompts conversacionais, com o aluno fundamentando e defendendo pontos de vista.
De qualquer forma, a conexão entre o uso da tecnologia e os componentes curriculares deve ser explicitada no planejamento do professor.
Como podemos preparar os alunos para um futuro em que a IA estará cada vez mais presente no mercado de trabalho?
Diferentemente do que alguns discursos sugerem, ensinar apenas o uso técnico da IA não deve ser nossa prioridade. O foco deve estar em desenvolver competências cognitivas fundamentais que transcendem a ferramenta em si.
Mais importantes são as habilidades e competências situadas em um plano cognitivo que está além do uso da tecnologia. De forma "clássica", na discussão que já vinha se estabelecendo antes da era-GPT, Joseph E. Aoun já apontava como elementos da "Educação à prova de robôs":
Pensamento crítico e analítico: capacidade de avaliar informações, discernir vieses, resolver problemas complexos.
Criatividade e originalidade: Gerar ideias novas, abordagens inovadoras.
Inteligência emocional e social: empatia, colaboração, comunicação interpessoal, liderança.
Adaptabilidade e aprendizagem contínua: capacidade de aprender novas ferramentas e se adaptar a mudanças.
Letramento digital em IA: compreender como as tecnologias funcionam, usá-las de forma eficaz e ética, e entender suas implicações sociais.
Embora algumas delas já estejam "na mira" das IAs, a exemplo dos modelos baseados em raciocínio, elas são necessárias para entender os problemas aos quais a IA pode ser aplicada.
Na próxima edição continuaremos com nossa coleção de perguntas frequentes sobre o uso da IA na Educação, abordando temas mais abrangentes como formação docente, acesso, segurança e vieses. Mas caso tenha alguma pergunta para estimular o debate, é só mandar!
Excelente texto.
Lendo novamente pois acredito que o momento é o de encontrarmos uma forma de utilizar a IA a nosso favor. Obrigada pela reflexão.