Readaptação de materiais didáticos com IA
Explore a transformação de materiais didáticos e a criação de recursos de apoio para a aprendizagem em diferentes níveis e modalidades de comunicação

Bem-vindos a mais uma edição da IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação. Esta semana vamos explorar como readaptar textos originais com a ajuda da IA para com diversas aplicações no âmbito acadêmico.
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
A cena é familiar a muitos docentes: uma seleção cuidadosa de artigos e capítulos de livros, com objetivo nobre: expor os estudantes ao conhecimento essencial, às nuances do debate acadêmico, às fontes primárias. Contudo, entre a disponibilização do material e sua apropriação pelos alunos há um abismo considerável, caracterizado por dificuldades de compreensão, falta de familiaridade com a terminologia técnica ou simplesmente pela intimidação diante da densidade do texto.
E se, em vez de apenas entregar o texto “bruto”, pudéssemos oferecer diferentes portas de entrada para o mesmo conteúdo? E se fosse possível moldar, transformar e adaptar esses materiais didáticos para atender não apenas às necessidades de acessibilidade, mas também a diferentes níveis de conhecimento prévio e estilos de aprendizagem?
Esta não é uma tarefa trivial. Exige tempo, esforço e um olhar atento sobre as necessidades dos alunos e sobre os objetivos de aprendizagem. Este processo de readaptação textual encontra na IA, entretanto, uma fonte de possibilidades.
Por que readaptar textos e outros materiais didáticos?
A diversidade de estilos de aprendizagem e níveis de compreensão em uma sala de aula exige de nós educadores mais versatilidade nos conteúdos que proporcionamos. Trata-se de uma necessidade pedagógica, estabelecendo uma diferença entre um aluno que apenas irá memorizar informações - ou simplesmente ignorá-las - e aquele engajado com o material e sua compreensão mais profunda.
Dessa forma, resumos ajudam a consolidar informações essenciais, glossários tornam o vocabulário técnico mais acessível, estudos dirigidos incentivam o pensamento crítico e listas de perguntas frequentes antecipam dúvidas comuns.
Resumos, glossários e outros recursos de apoio à aprendizagem
Há tempos, os professores universitários deixavam pilhas de textos em seus escaninhos nas “xerox”. Atualmente, fazem algo equivalente, mas com PDFs. Se os aluno leem tal quantidade de páginas, é outra história…
Porém, queixar-se dos hábitos de leitura da juventude ou das deficiências na formação para métodos e técnicas de estudo pode ser uma desculpa confortável. Docentes podem, e devem, auxiliar o acesso cognitivo às leituras.
Em primeiro lugar, a elaboração de resumos vai mais além da redução do número de palavras. Envolve, isso sim, a identificação da temática, dos conceito-chave, dos argumentos e teses desenvolvidas pelo autor. Ao sintetizar, destaca o que é mais importante, orientando a leitura e o estudo por parte dos alunos.
No caso, as ferramentas de Inteligência Artificial têm mostrado bom desempenho para esta tarefa, com a capacidade de analisar grandes volumes de texto, identificando e sintetizando seus pontos principais. Através do prompt ou do ajuste de parâmetros em ferramentas mais especializadas, o resultado final pode ser melhor alinhado com os objetivos de aprendizagem propostos.
Por sua vez, a criação de glossários envolve a identificação de conceitos e termos técnicos, com sua respectiva explicação e contextualização. Nesse sentido, as ferramentas de IA podem ser particularmente úteis na etapa inicial, identificando palavras e ideias que sejam mais desafiadoras, do ponto de vista da compreensão dos alunos e de seu contexto.
Já os estudos dirigidos consistem em roteiros de perguntas ou tarefas que buscam guiar ativamente a leitura e a reflexão do aluno sobre o material. Sua função, é facilitar a compreensão e estimular a análise crítica, a conexão de ideias e a aplicação do conhecimento. A IA pode oferecer um ponto de partida, analisando o texto original para sugerir um roteiro e questões.
Finalmente, listas de perguntas e respostas frequentes (as FAQ - Frequently Asked Questions) antecipam dúvidas e, esperançosamente, reduzem o trabalho dos professores de respondê-las. Ainda que esta seja uma habilidade desenvolvida com a experiência, as ferramentas de IA fornecem uma outra perspectiva. Alimentá-la com exemplos de perguntas reais feitas por alunos pode melhorar os resultados e levar à identificação de novos questionamentos.
Observações importantes. Em primeiro lugar, muitas pessoas poderão argumentar que elaborar resumos e glossários seria responsabilidade dos próprios alunos. Dependendo do contexto, concordo. Mas também precisamos pensar em termos de inclusão educacional, que não se limita às deficiências físicas.
A inclusão cognitiva é necessária, de forma que não podemos presumir que os alunos tenham a mesma competência que a nossa ao ler textos que geralmente são complexos. Considerando desde padrões neurodivergentes de aprendizagem até estudantes com um capital cultural desfavorecido, muitos necessitarão deste tipo de apoio.
Como segundo ponto, a elaboração destes recursos não é de maneira nenhuma condicionada ao uso da Inteligência Artificial. Todo professor poderia elaborar o resumo de um texto ou o glossário de uma disciplina.
Aqui, porém, temos o fator tempo e esforço, ao qual se soma o potencial “criativo” da IA, no sentido de auxiliar na identificação de abordagens ou recursos não considerados previamente. Além disso, a perspectiva de personalização pode ser facilitada. Isso abre caminho para a geração não de um recurso único, mas de distintas versões que atendam a diferentes níveis de conhecimento prévio, estilos de aprendizagem ou interesses específicos dos alunos.
Readaptação de modalidades: do escrito ao oral
Conectando com um dos pontos anteriores, a inclusão educacional, a readaptação de materiais didáticos passa pelas diferentes modalidades de comunicação. Assim, o atual nível de desenvolvimento tecnológico das tecnologias de conversão texto-fala aprimoradas por IA possibilita esta tarefa.
Um primeiro foco seria proporcionar acessibilidade de pessoas com deficiência visual. Como explorarmos anteriormente na edição dedicada a romper barreiras educacionais e acessibilidade com IA:
Para cegos e pessoas com baixa visão, a audiodescrição opera no outro sentido, passando textos e imagens para a linguagem oral. A possibilidade de geração automatizada de narrações, comentários, descrições detalhadas e transcrições fazem com que materiais baseados em imagem, incluindo texto escrito, passem a cumprir com requisitos de acessibilidade.
Mas as alternativas em áudio ao material escrito também podem favorecer estudantes com preferências de aprendizagem auditivas. Esta forma de acesso é amparada por hábitos culturais, como por exemplo estudantes que estudam enquanto se deslocam ou realizam atividades diárias.
Esta adaptação modal pode levar inclusive à elaboração de outros materiais didáticos, enriquecendo uma disciplina como um todo. Não limitado às conversões texto-fala, um texto pode ser transformado num roteiro de diálogo, base para a elaboração de um podcast.
Esta última possibilidade é justamente uma das funções do NotebookML, um aplicativo de IA do Google. Essa ferramenta, concebida como um “caderno de estudos” amplificado por IA cria resumos e guias de estudo, além de gerar um podcast em áudio, com as vozes de duas pessoas comentando e interpretando o texto. Entretanto, tal funcionalidade somente está disponível em inglês, no momento em que se escreve.
Níveis de comunicação científica
Uma outra possibilidade de readaptação textual diz respeito aos públicos de um texto, principalmente quando estamos falando informação de caráter técnica ou científica.
Dessa forma, alcançar uma audiência mais ampla, seja um público não especializado na área ou o público geral, exige uma reformulação que vai mais além dos aspectos de linguagem. Embora seja comum escutarmos falar da divulgação como uma “tradução” do discurso científico, esta metáfora é inadequada.

Sigo aqui a proposta de Jacobi (2000): mais do que traduzir, adaptar o nível de comunicação em termos de conhecimento exige uma reinterpretação, a partir das diferenças entre a linguagem científica, altamente especializada e a cotidiana. Para isso é preciso realizar uma seleção, destacando e omitindo os elementos de um relatório científico clássico que não tem relevância para um público geral, como certos detalhes metodológicos e de análise.
Por outro lado, partes pouco desenvolvidas no discurso científico – por serem triviais ou evidentes nesse contexto especializado – precisam ser abordadas no discurso divulgativo. Os impactos sociais da pesquisa em questão, ou seja, como ela afeta o dia a dia das pessoas, é a principal delas.
A segunda operação é a transformação, pela qual a prudência e o ceticismo, inerentes à natureza provisória e refutável da pesquisa científica, são transformados em afirmações categóricas e em generalizações. Este tipo de modificação agrega uma dimensão humana e social à mensagem, podendo ser realizada através de uma estrutura narrativa. Por exemplo, estórias de mistério ou de “detetive”, nas quais a ciência triunfa sobre determinados enigmas.
Finalmente, uma reformulação é necessária para que o texto alcance uma audiência mais ampla, com a explicação de termos especializados ou mesmo de sua substituição.

Fora do contexto acadêmico, a transformação do nível de comunicação científica pode ser entendida em qualquer relação entre especialista e não-especialista. Seria o caso de um diretor de escola ou professor comunicando e justificando práticas pedagógicas e de assistência estudantil aos pais, por exemplo.
Novamente, não é necessário utilizar ferramentas de IA para transformar um texto técnico-científico em divulgação, muito pelo contrário. Mas, dada a baixa valorização e o pouco tempo frequentemente dedicados à divulgação científica, o auxílio da tecnologia pode ser bem-vindo.
Readaptação simultânea para o nível e meio de comunicação
Um caso específico de readaptação textual envolve tanto o conteúdo como a forma. Seria o contexto de gerar uma versão de um texto para divulgação em redes sociais, isto é, de adaptar a mensagem ao meio.
Nesse ponto, além da redução significativa da extensão, é preciso adequar a linguagem para ser mais direta e capaz de provocar engajamento com o público.

Adicionalmente, através de prompts ou de ferramentas específicas de IA - como os utilizados pela comunidade de marketing digital - é possível e talvez necessário incluir elementos específicos desta modalidade de comunicação, tais como “ganchos” (hooks) e “chamadas à ação” (CTAS - call to actions).
Integração na prática docente
Dada as possibilidades tecnológicas e a justificativa da readaptação de materiais textuais no âmbito pedagógico, resta-nos discutir o “como fazer”.
Um ponto comum a todas essas formas de readaptação é a necessidade de o professor revisar e validar todo material gerado pela IA, buscando garantir sua qualidade e adequação pedagógica. Aqui, os princípios éticos de “agência humana” e “autoria” devem prevalecer.
É sempre importante ressaltar que a natureza probabilística de texto gerado por IA pode incorrer em riscos como a simplificação excessiva de conceitos complexos ou de perda de nuances importantes do original. Erros ou imprecisões podem ser introduzidos e se não detectados, levam a mal-entendidos.
Além disso, o caráter ainda experimental da IA exige uma abordagem equilibrada. O teste de diversas ferramentas e prompts deve ser acompanhado de uma revisão crítica dos resultados e da revisão e refinamento constantes.
Alternativamente, o docente pode considerar envolver os próprios alunos no processo. Solicitar retorno sobre a clareza e utilidade dos materiais adaptados não apenas tende a melhorar os resultados obtidos, mas também promove habilidades de pensamento crítico e metacognição entre os estudantes. Com o objetivo final de tornar o aprendizado mais acessível, são eles os mais interessados.
Referência
JACOBI, Daniel. Written scientific communication – from magazines to texts displayed. In: SCHIELE, Bernard; KOSTER, Emlyn. H. (ed.). Science centers for this century. Quebéc: Editions Multimondes, 2000. pp. 335-361.
IA em Ação
Readaptação de texto, levado ao extremo A partir do artigo científico enviado, a ferramenta gerou uma entrevista em vídeo.
Tudo “fake”, ou melhor dizendo, “deepfake”. Falson, no sentido do vídeo ser gerado artificialmente, a partir dos avatares de Ethan Mollick e da entrevistadora, embora ancorado na realidade concreta do texto. Assustador? Inútil? Porta de entrada para golpe e enganos? Ou tem o potencial de transformar a comunicação científica?
Excelente conteúdo. Considero que a IA não só pode simplificar a comunicação científica, mas também expandir os meios através dos quais a ciência é compartilhada, aumentando o alcance, o impacto e a compreensão das descobertas científicas. No entanto, é importante que seu uso seja acompanhado de uma abordagem ética e cuidadosa, especialmente para garantir a precisão e a qualidade das informações. Considerando a grande variedade de ferramentas de IA disponíveis, quais você acredita serem as mais eficazes para garantir a precisão e a qualidade do conteúdo adaptado, especialmente em textos científicos, e como os professores podem balancear a utilização dessas ferramentas com a necessidade de manter a autenticidade acadêmica? Abração