Tecnologia vestível e Inteligência Artificial: Black Mirror na Educação?
Um olhar sobre a realidade por trás dos wearables turbinados por IA

Bem-vindos a mais uma edição da IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação. Esta semana exploramos as promessas de um marketing agressivo e o que há de realidade na perspectiva de uma cognição aumentada ou de uma vigilância constante através dos chamados dispositivos vestíveis.
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
“A História Completa de Você”, terceiro episódio da primeira temporada de Black Mirror, "é um dos que ajudaram a tornar uma das séries mais marcantes da atualidade. No episódio, um dispositivo (chamado “grão”) é implantado em pessoas dispostas, passando a gravar tudo o que elas veem e experimentam. As gravações podem ser então revistas e projetadas para outros verem. Como fica evidente, as repercussões são intensas, pois toda e qualquer performance pública - de uma apresentação oral a uma discussão de relacionamento pessoal - torna-se objeto de análise.
Agora, um dos fatores de sucesso desta série é abordar a ficção científica - no sentido de avanços tecnológicos e suas repercussões - num panorama muito próximo do atual. Aqui entram os “vestíveis” - ou wearables na terminologia em inglês - associados à IA, objetos de investimento e aposta de lucro por parte das startups e big techs.
Para uma definição simples: dispositivos vestíveis são uma classe de dispositivos tecnológicos digitalmente aprimorados (por exemplo, óculos, relógios, sapatos, pulseiras, roupas, câmeras, etc.) que podem ser usados em quase qualquer parte da anatomia humana.
Assim, enquanto os wearables “tradicionais” - a exemplo de um relógio inteligente - captam alguns dados automaticamente ou sob comando do usuário, aqueles capazes de gravar vídeo e áudio, turbinados com algoritmos de IA, levarão o processamento e análise desta informação a outro patamar. Por exemplo, a identificação automática de objetos, rostos e textos no campo de visão do dispositivo prometem experiências não somente de realidade aumentada, mas de cognição aumentada. Mas o que podemos esperar, na prática?
Sobre hype, estética e modismos
Apresentados como uma evolução revolucionária da tecnologia vestível convencional, os novos wearables ganham destaque na mídia corporativa. Alguns dos lançamentos recentes foram:
IA Pin - Humane
Este “broche IA” controlado por voz, permite que os usuários toquem músicas, façam chamadas e realizem perguntas, além de contar com um projetor a laser embutido. Não durou muito tempo, a rejeição fez com que parasse de ser comercializado.
Óculos Rayban - Meta
Inclui funcionalidades baseadas em IA, como a identificação de locais públicos e capacidade de traduzir texto.
Evie Ring
Voltado para o público feminino, “estiloso e elegante”, o anel registra dados de saúde e faz análises sobre mudanças de humor, menstruação e “mais” (sic). Seus algoritmos realizam correlações e análises de tendências dos dados, proporcionando perspectivas personalizadas.
Além destes, uma resenha de 20 dispositivos recém lançados argumenta, sem comprovação técnica, que eles “aprendem continuamente” com as interações do usuário, melhorando seu desempenho e precisão ao longo do tempo, tornando-se “intuitivos”. Na tônica geral, são promessas vagas, típicas de materiais de marketing que buscam monetizar produtos através de expectativas infladas sobre a tecnologia emergente.
Particularmente, a alegação de “aprendizado adaptativo” é utilizada sem detalhamento de como a experiência de personalização realmente funcionaria. A visão comercial idealizada continua: constantemente acessíveis, os dispositivos supostamente não seriam incômodos de carregar ou operar, casando “o poder da Inteligência Artificial com a conveniência da tecnologia vestível”.
Assim, além dos dados biométricos utilizados para o monitoramento de saúde, os vestíveis também poderiam auxiliar em outras esferas de nosso cotidiano. Ao registrar todas nossas interações e conversas, vende-se a ideia de um “coach de vida”, capaz de analisar a forma como nos relacionamos e agimos, logo recomendando ações corretivas. Bem no estilo Black Mirror.
Além da função instrumental, os vestíveis são anunciados como acessórios de moda e estilo, supostamente “versáteis” e adequados para “um amplo espectro de indivíduos” . Porém, apesar do “pioneirismo” de empresas como Humane, Meta e Rewind nesta “revolução estilística”, podemos perceber o caráter efêmero destes produtos.
Dito de outra forma, todo este discurso reforça o papel dos produtos tecnológicos como artefatos de distinção social. Tal fusão entre tecnologia e moda, com o valor do objeto transcendendo sua utilidade em direção à significação social é o que Gilles Lipovetsky, autor de “O Império do Efêmero”, classificaria como obsolescência programada, baseada numa eterna renovação. Sem rodeios: a tecnologia hoje celebrada estética e socialmente como objetos de desejo temporário, rapidamente será vista negativamente, no próximo ciclo da moda.
De forma paralela, a “revolução” dos vestíveis pode ser abortada antes mesmo de começar, conforme smartphones passam a se reposicionar como “telefones inteligentes com IA”. Neste momento, praticamente todas as fabricantes já dispõe de modelos equipados com IA.
Com acesso direto a chatbots como Gemini ou ChatGPT, a necessidade de um dispositivo a mais seria anulada e continuaríamos com o telefone como principal interface de acesso. Nesse ponto, o fator “esquisitão” deve ser levado em conta quando se trata de dispositivos vestíveis, ao serem intrusivos em relação a dispositivo mais discretos, como por exemplo fones de ouvido. Normas culturais, inclusive o hábito de não utilizar comandos de voz para a interação com a tecnologia, pesam em sua aceitação.
Somado a estes percalços, o próprio histórico da tecnologia vestível sinaliza um fracasso destes esforços de marketing. O Google Glass, anunciado como potencial substituto dos smartphones foi um notável fracasso, rapidamente cancelado pela empresa. A incapacidade da indústria de proporcionar aos consumidores uma experiência de valor prático não resiste ao hype, de acordo com Jannek Sommer, professor da Universidade da Dinamarca do Sul.
Diante das limitações que a realidade impõe sobre as afirmações entusiasmadas do marketing, os wearables teriam algum uso específico na Educação?
Mais hype: irrealidades dos wearables no contexto educacional
Como etapa de preparação deste texto, perguntei a um chatbot de IA quais seriam os benefícios da tecnologia vestível para o campo educacional:
Esses acessórios “supersensoriais” têm um grande potencial para transformar as experiências de aprendizagem. Estudantes podem usar óculos ou broches de IA para gravar facilmente aulas completas em áudio e vídeo, nunca mais perdendo detalhes importantes das explicações dos professores.
Os recursos de transcrição automática também auxiliam na produção de anotações precisas para estudo posterior. Além disso, educadores podem se beneficiar do reconhecimento de objetos e tradução em tempo real para tornar suas aulas mais ilustrativas e inclusivas, especialmente ao ensinar idiomas ou conceitos visuais complexos.
As possibilidades de explorar realidades aumentadas e experiências imersivas por meio desses dispositivos trazem uma nova dimensão interativa para as salas de aula tradicionais. Com os acessórios wearable, estudantes e professores terão uma nova perspectiva aprimorada pela IA para aprimorar o registro, a compreensão e a vivência dos processos educacionais.
Tal visão deslumbrada é corroborada por uma diversidade de textos, a exemplo de um artigo de blog publicado por uma consultoria tecnológica apresentando os “benefícios” dos wearables para a Educação. Alegações de que a tecnologia foi “adotada pelo setor educacional para criar uma experiência de aprendizagem mais conectada e abrangente” não são respaldadas por um exemplo sequer.

De forma similar, o “papel futurista” destes dispositivos causaria um “imenso impacto” para as experiências de aprendizagem e engajamento estudantil. Num mercado de 6 bilhões de dólares até 2032 (supostamente), os vestíveis seriam usados para proporcionar bem estar mental e emocional aos estudantes, possibilitariam rotas de aprendizagem personalizadas e fomentariam o engajamento e a retenção.
Por sua vez, a questão de segurança é evocada, com dispositivos monitorando as salas de aula em tempo real e enviando dados para “educadores ou autoridades”. O monitoramento de dados vitais em aulas de Educação Física e o controle automático de presença seriam mais alguns da “pletora de benefícios”.
Entretanto, as afirmações vagas sobre aprendizagem personalizada, imersão e engajamento não são fundamentadas ou explicadas. Em comum, esses textos não apresentam nenhum caso de uso real deste tipo de tecnologia aplicadas em escolas ou outros ambientes educacionais. Sua semelhança com a resposta da IA a meu questionamento sugere inclusive como eles foram escritos.
Mas além desta discussão generalizada, especulativa e sonhadora, existe alguma perspectiva concreta de uso de tecnologia vestível na Educação? Podemos encontrar alguns indícios na pesquisa aplicada.
Vestíveis como objeto de indagação científica
Do ponto de vista teórico, argumenta-se sobre o potencial para o aumento da inteligência através da simbiose humano-máquina. Dispositivos digitais corporais poderiam incrementar as capacidades humanas através de sensibilidade contextual, interação sem as mãos e processamento constante de informações. Estes caminhos de expansão cognitiva contemplariam relações de complementação, suplementação, mediação e constituição mútua entre o humano e a máquina.
Em termos mais pragmáticos, a aplicação de destaque é a obtenção de informações sobre o usuário e seu ambiente de maneira não intrusiva, por meio de vestíveis. Assim, um mapeamento sistemático da literatura mostrou a tendência do uso de sensores inerciais comerciais no Ensino Fundamental: quantidade de passos, quantificação da atividade física, calorias gastas, classificação de movimentos e verificação de gestos são informações que professores e escolas captam com estes dispositivos.
Outra pesquisa de levantamento identificou a cabeça, punhos e o peito como as áreas do corpo nas quais os vestíveis são mais utilizados em projetos educacionais. Assim, embora o uso de óculos e visores montados na cabeça sejam apontados como fator de favorecimento da localização espacial e da atenção em simulações, o uso para a captação de ondas EEG também é identificado. Por sua vez, dispositivos utilizados no punho são utilizados primariamente na obtenção de dados relacionados ao estresse ou ao movimento, enquanto Sensores adesivos para o peito são usados para a medição do estresse ocupacional.
Ainda em relação ao ambiente, um estudo investigou a viabilidade de uma ampla gama de dispositivos, incluindo smartwatches, sensores biométricos e localizadores para a segurança escolar. Apesar de um certo potencial para incrementar a segurança, os riscos associados com privacidade, segurança de dados, aceitação pelos usuários e outras questões éticas foram ressaltados pelos autores.
Apontando para o fato de que os vestíveis não são todos iguais - exoesqueletos e visores montados na cabeça são percebidos como invasivos, por exemplo - a revisão sistemática focada em dispositivos de pulso identificou uma grande heterogeneidade de propostas de intervenção em relação aos objetivos e tipos de dados sendo coletados. Entre os achados, uma parte significativa das pesquisas se concentra na Educação Básica (“K-12 education”, no original), ainda que estudos de aprendizes adultos sejam prevalecentes. Em relação aos tópicos, a formação docente e as linguagens são sub-representados em relação às áreas científicas. De qualquer forma, estudos de usabilidade, viabilidade e percepção de uso ainda são necessários.
Buscando uma “perspectiva holística” dos wearables para objetivos educacionais outro estudo de levantamento identificou os tipos, populações-alvo e contextos de uso dos projetos reportados na literatura científica. Dessa forma, sete tipos diferentes de uso foram identificados.
1. Estruturação da aprendizagem
Guiando atividades ou auxiliando estudantes a executarem procedimentos específicos de uma tarefa.
Exemplo: aplicativo para GoogleGlass que orienta estudantes passo a passo em experimentos científicos, como a relação entre frequência sonora e quantidade de água num copo, também auxiliando na interpretação dos resultados através de processamento de imagens captadas pelo dispositivo.
2. Captura de dados para informar a aprendizagem
Coletando dados dos usuários durante atividades de aprendizagem.
Exemplo: estudantes de Física Avançada usando pulseiras para monitorar atividade eletrodérmica como indicador do nível de estímulo durante trabalhos colaborativos, a partir da comparação entre participantes.
3. Plataforma para aprendizagem STEM
Constituindo plataformas-alvo para estudantes desenvolverem código ou projetos de engenharia. Os vestíveis despertariam maior interesse em relação a dispositivos tradicionais, além de apresentar limitações de hardware com as quais estudantes mais avançados devem aprender a lidar.
Exemplo: Desenvolvimento de um kit de ferramentas para design de protótipos de e-têxteis.
4. Visualização de conhecimento
Auxiliando a compreensão de conceitos abstratos ou informações que normalmente não possuem representação física visíveis.
Exemplo: smartglasses transparentes fornecendo visualizações de realidade aumentada ancoradas a objetos reais em experimentos de Física sobre condução de calor, com potencial redução da carga cognitiva.
5. Orientação de comportamentos corporais
Apoiando a aprendizagem através de processos cognitivos ligados ao corpo (embodied cognition), a exemplo de retorno háptico.
Exemplo: jaqueta wearable de captura de movimento que fornece feedback vibrotátil para guiar usuários na adoção da posição correta ao aprender a tocar violino.
6. Auxílio a professores
Apoiando professores em tarefas como gestão de sala de aula e monitoramento do status dos estudantes.
Exemplo: aplicativo de smartwatch que envia lembretes sobre programações antecipadas de aulas e notificações em tempo real sobre trabalhos enviados por alunos.
7. Orientação de comportamentos em sala de aula
Auxiliando alunos a regularem seus próprios comportamentos em ambientes de aprendizagem.
Exemplo: aplicativo de smartwatch que fornece diferentes tipos de notificações para estudantes com deficiências intelectuais, lembrando-os de levantar a mão para falar ou moderar o volume da voz durante a participação em sala de aula.
Finalmente, num plano mais especulativo, pesquisadores propuseram o uso de wearables como “peles emocionais”, isto é, superfícies de visualização representando o estado emocional de um indivíduo ou grupo. O objetivo seria a facilitação de processos cognitivos, envolvendo elementos de comunicação social e de variáveis psicológicas.
Sintetizando, apesar de ideias que transitam ainda como imaginação criativa, com potencial a médio ou largo prazo, o uso de wearables parece condicionado à dimensão física, incluindo o movimento no espaço, além de variáveis biológicas. Neste último ponto, uma relação com um dos principais usos deste tipo de tecnologia - fitness e saúde - é inevitável.
Saúde e educação: campos correlatos?
Embora o campo da saúde digital represente um contexto diferente dos dispositivos vestíveis voltados para consumo geral, na atualidade vemos intersecções. Progressivamente, smartwatches e mesmo celulares se posicionam como auxiliares na promoção de hábitos saudáveis e no monitoramento de sinais vitais.
Assim, a detecção precoce de problemas cardíacos e apneia do sono, o fornecimento de dados em tempo real para autogestão de saúde, auxílio no gerenciamento de doenças crônicas, lembretes de medicação personalizados e a assistência a pessoas com deficiência e cuidados com idosos são algumas das aplicações em voga.
E neste ponto também há uma coincidência com muitas das pesquisas e intervenções propostas, com o uso dos dispositivos vestíveis para inferir estados emocionais ou modos de interação social a partir de dados biométricos.
Neste ponto cabe ressaltar que a medicalização e biologização da educação é uma tendência sempre presente, capaz de transformar o desempenho escolar em problemas biológicos. Ao reduzir a complexidade dos desafios educacionais a causas orgânicas - como desnutrição ou disfunções neurológicas - fatores sociais, políticos e econômicos são ignorados. Algo que, nessa perspectiva, o uso dos vestíveis pode acentuar.
Tem como dar certo?
Apesar das potenciais aplicações dos dispositivos vestíveis impulsionados por IA na educação, os desafios práticos e éticos são expressivos.
Uma das principais críticas, inclusive identificada pela literatura científica, diz respeito à privacidade e vigilância tecnológica. Dispositivos capazes de gravar conversas e capturar imagens sem o consentimento de colegas ou professores levam diretamente à violação de privacidade e uso indevido desses registros. Ambientes sensíveis como escolas e salas de aula, nos quais alunos menores de idade estão presentes, configuram-se um pesadelo ético.
Outro ponto controverso é precisão e confiabilidade dos sistemas de reconhecimento de voz, objetos e rostos embarcados nesses dispositivos. Erros e vieses nos algoritmos de IA podem levar a transcrições imprecisas, identificações incorretas e experiências negativas para alunos e educadores.
Portanto, para que esses acessórios vestíveis possam de fato ser utilizados com algum sentido no âmbito educacional, privacidade, transparência, ética e confiabilidade devem ser contemplados.
Diante do pouco que podem ofertar - até mesmo em relação aos dispositivos celulares - junto com questões tradicionais que explicam o fracasso de grande parte das iniciativas da tecnologia educacional (custo, capacitação docente, sentido de uso…) creio que estamos diante de pouco mais que um hype momentâneo.