A Inteligência Artificial vai substituir os professores?
Reflexões sobre o potencial de desumanização da Educação
Bem-vindos a mais uma edição da IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação. Nesta semana, vamos enfrentar aquela pergunta que deixa todo professor de cabelo em pé, quando surge o tema da Inteligência Artificial: os professores continuarão a existir, serão substituídos pela máquina?
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
A ascensão das Inteligências Artificiais (IAs) generativas tem desencadeado um intenso debate sobre o potencial de substituição de profissionais, principalmente em áreas que lidam com a informação e o conhecimento. Como não poderia deixar de ser, a Educação está incluída.
A noção de que as IAs possam ocupar o papel de professores tem sido reavivada, suscitando preocupações sobre os impactos dessa possibilidade para a profissão docente. Alarmismo a parte, o que podemos dizer sobre o tema?
Um projeto metafísico?
O desejo de substituir o humano por entidades artificiais não é algo recente. Não tenho isso elaborado ou sistematizado, mas poderia diria que é um projeto ideológico, profundamente enraizado em nossa cultura. Desde as primeiras obras de ficção científica até os avanços tecnológicos mais recentes reaparece, vista como fascinação ou com temor.
Uma de suas primeiras manifestações pode ser encontrada no Frankenstein de Mary Shelley, publicado em 1818. A criação de uma criatura artificial, com a ciência desafiando os limites da Natureza também suscitava questões de moralidade.
Décadas antes, em 1770, o chamado "Turco Mecânico" já tinha causado sensação na Europa. Uma máquina aparentemente capaz de jogar xadrez derrotando personagens como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin depois foi revelado como engano. Mas o fascínio de criar autômatos capazes de imitar e até superar as capacidades humanas.
Essas narrativas e manifestações culturais refletem uma ideologia subjacente: a crença de que o humano pode ser superado pela sua própria criação. De certa forma, assim como o Frankenstein-criador foi superado pelo Frankenstein-criatura, é um projeto niilista. Porém, de forma estranha, esse projeto se manteve sedutor ao longo dos séculos.
Um projeto paradigmático
A ideia de substituição do humano está enraizada numa visão mecanicista do mundo, que reduz a realidade a uma série de problemas e de processos que podem ser separados, analisados e resolvidos, um a um. Esta mesma visão cartesiana nos leva a pensar a substituição do humano como uma questão de eficácia e de eficiência.
Disponíveis 24 horas por dia, sem limitação de horários ou períodos de descanso, atendendo cada aluno de forma personalizada, respeitando suas necessidades e ritmos individuais de aprendizagem.
A ideia de ensino personalizado, frequentemente apresentada como uma das principais promessas das Inteligências Artificiais na Educação, é de fato, um projeto mais antigo do que se imagina. Como destaca Audrey Watters em seu levantamento da história da tecnologia educacional , ela remonta a décadas atrás, muito antes do surgimento das tecnologias digitais.
A "instrução programada" já era pensada na década de 1920 por teóricos como Sydney L. Pressey e B.F. Skinner. Esses psicólogos acreditavam que o processo de aprendizagem poderia ser mais eficiente se fosse dividido em pequenas etapas, com feedbacks imediatos, algo que poderia ser automatizado.
Como ressalta Watters, esse ideal permaneceu ao longo da história da tecnologia educacional, primeiramente através das "máquinas de ensinar", dos sistemas de "instrução assistida por computador" (CAI, na sigla em inglês) da IBM e chegando às primeiras iterações da Inteligência Artificial.
E além disso, eficiência, escalabilidade, produtividade, livres das imperfeições humanas também significam redução de custos.
Um projeto econômico
Por trás do entusiasmo em torno da adoção das Inteligências Artificiais (IAs) existe um forte argumento econômico: a viabilidade financeira ancorada na substituição do trabalho humano.
Num mundo competitivo, empresas e instituições buscam constantemente maneiras de reduzir custos e aumentar a eficiência operacional, é fato. A implementação de soluções de IA é associada a estes objetivos. Ao automatizar tarefas anteriormente realizadas por seres humanos, as IAs prometem uma redução significativa nos gastos com salários e benefícios, representando uma economia substancial.
Neste exato momento, este é um tema de discussão acirrada no mundo da IA. Empresas como OpenAI, Anthropic e as mais tradicionais gigantes tecnológicas somente poderão continuar a desenvolver seus produtos caso tenham viabilidade econômica. E esta não depende das assinaturas individuais dos planos premium, mas do uso por parte de grandes empresas. Que por sua vez somente assumirão este custo caso aumentem sua eficiência e lucratividade. Nesse raciocínio, fica evidente que o trabalhador humano é o mais prejudicado.
No campo educacional, a perspectiva de substituir professores por sistemas de IA é particularmente sedutora do ponto de vista financeiro. Os custos associados à contratação e manutenção de um corpo docente qualificado - visto como gasto - são significativos.
Dessa forma, num cenário cada vez mais privatizado, plataformizado, competitivo, com limitações na oferta de mão de mão de obra, o temor de substituição dos professores é algo a ser levado em conta. Seriamente.
Afinal, professores serão substituídos?
O contraponto às raízes metafísicas, epistemológicas, culturais e econômicas da substituição do ser humano pela máquina é justamente a humanização, ligado a um conceito ou entendimento do que é Educação.
Ela se resume, de forma reducionista, a um processo mecânico de transmissão-absorção de conhecimentos? Ou envolve algo mais como são as habilidades habilidades sociais, emocionais e éticas, tão específicas da interação humana? Ou mesmo a criatividade, tão proferida como a competência essencial do século XXI?
Justamente, a interação humana é essencial para a construção de vínculos e relações significativas, tão necessárias para engajamento e motivação dos estudantes. As IAs, por mais avançadas que sejam, carecem da capacidade de estabelecer conexões genuínas. São incapazes de compreender as nuances das experiências humanas. Este é argumento utilizado por autores como Neil Selwyn e Joseph E. Aoun, mesmo antes do boom das IAs generativas.
Professores possuem um valor intrínseco no processo educativo, se consideramos a Educação como um projeto de desenvolvimento integral dos educandos. Educar é uma experiência humana, com suas nuances, emoções e complexidades. Somos modelos de conduta, condutores de empatia e facilitadores do crescimento pessoal.
Mais além da dimensão pedagógica, o impacto sobre a Educação enquanto instituição social não pode ser negligenciado. Desemprego estrutural, impacto econômico sobre comunidades e economias locais. Acentuação de desigualdades educacionais e perpetuação de ciclos de pobreza e marginalização colocam e questão a sustentabilidade da IA a longo prazo, mais além da economia de custos imediatos.
Concluindo, a substituição de professores por Inteligências Artificiais representa um risco significativo para a Educação enquanto formação humana. É uma luta para a qual precisamos estar preparados.
Perguntei lá na outra rede e deu um resultado positivo para os empregos humanos.
IA em Ação
Startup dos EUA quer substituir enfermeiros reais por IA
A Nvidia anunciou uma colaboração com a Hippocratic AI, uma startup do Vale do Silício que desenvolve uma linha de enfermeiros virtuais baseados em inteligência artificial generativa (chamados pela companhia de agentes) para auxiliar pacientes por meio de chamadas de vídeo em tempo real.
Se substituir "saúde" por "educação" vemos a mesma tendência, a substituição de seres humanos por software, como se os profissionais fossem preguiçosos, ineficientes, perigosos e que custam demais.
Negócios desiludidos descobrem que a IA não é tão boa assim
Empresas estão desiludidas com a IA devido a problemas como alucinações, desinformação, plágio e alto consumo de energia. Investidores, que esperavam retornos rápidos, estão frustrados com a falta de confiabilidade da tecnologia.
IA em Prática
Já faz alguns anos, mas na Coreia do Sul há um projeto em desenvolvimento desde 2010 cujo objetivo é construir um “exército de robôs” para proporcionar o ensino de inglês a crianças em idade escolar.
Bem, robôs talvez seja um exagero para descrever um boneco com uma tela no peito. Nesta tela, a telepresença de um professor é projetada para interagir com os alunos.
A premissa do projeto seria a falta de professores nativos capacitados e fluentes, necessária para “atender às demandas do mercado de inglês” . Mas outra justificativa era uma desconfiança cultural em relação a docentes estrangeiros, sob o temor de abuso ou de professores usuários drogas ou com passados criminais.
Segundo a avaliação de um pesquisador do Instituto Coreano de Ciência e Tecnologia, instituição financiada publicamente que desenvolveu o Engkey o resultado seria positivo. O robôzinho teria ajudado a aumentar o interesse e o engajamento no estudo do inglês entre os estudantes da Educação básica.
Aparentemente o projeto continua sendo bem avaliado, pois tem se desenvolvido e aperfeiçoado, como mostra este vídeo de 2015 e notícias mais recentes.
Prompt da Semana
Dizem que um bom professor nunca responde a uma pergunta. Com base no método dialético de Sócrates o pensamento crítico se forma com base no questionamento, no desafio das próprias crenças e na exploração de diferentes perspectivas. O “Companheiro Socrático” é um clássico dos prompts e pode ser acessado em nossa biblioteca de prompts.
Momentos de Reflexão
Mas não é paranoia se eles [os robôs] realmente estiverm atrás de você. Máquinas têm substituído o trabalho humano desde que um pedaço de sílex provou ser mais afiado que uma unha. A história da obsolescência no local de trabalho é quase tão antiga quanto a história do trabalho. À medida que as tecnologias aumentam nossa capacidade de trabalho, a natureza do trabalho muda. A questão é se a evolução do trabalho no século XXI é qualitativamente diferente da evolução do trabalho no século XX, XIX, ou, de fato, no século X a.C.
AOUN, Joseph E. Robot-proof: Higher Education in the Age of Artificial Intelligence. The MIT Press, 2018.
E especificamente o trabalho docente, é diferente? E se for, com tanto desemprego estrutural que a IA promete, será possível acomodar professores substituídos atividades ou novas profissões, ou eles farão parte dos "inúteis"?
O objetivo final e utópico da tecnologia não seria liberar o ser humano da carga do trabalho?
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