Inteligência Artificial: ponte entre culturas?
Avanços e desafios da IA intercultural num mundo globalizado
Bem-vindos a mais uma edição da IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação.
Nesta semana vamos debater uma aplicação frequentemente anunciada, a possibilidade de utilizar a IA na educação intercultural.
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
Lembro até hoje: quando estudei na Espanha, um amigo belga quase teve um surto, ao se desabafar revoltadamente sobre o atraso sistemático do início das aulas (eu, nem tinha percebido!). Já o colega judeu não frequentava as aulas dos sábados, colocando um desafio para a coordenação do curso.
Estes são alguns exemplos de como, num mundo cada vez mais globalizado e diverso, a prática de uma educação intercultural nos exige reconhecer e valorizar e diversidades, além de promover um ambiente de respeito e compreensão mútua.
Para isso, é necessário que desenvolvamos habilidades de comunicação e de empatia, além de praticarmos a aprendizagem cultural. Entretanto, vemos todos os dias anúncios de como a Inteligência Artificial será utilizada para superar as barreiras entre culturas.
Particularmente, enquanto modelos de linguagem, a IA generativa acena com a possibilidade de aproximar estudantes e educadores de diferentes contextos culturais. Mas, objetivamente, como a IA colaborar para salas de aula cada vez mais diversas, laboratórios vivos de cidadania global?
Ano após ano, temos visto como a tradução automática tem se aproximado do imaginário Peixe Babel da série O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Explicando, o Babel Fish é uma espécie alienígena capaz de traduzir qualquer linguagem para qualquer outra. Isto é, seria um tradutor universal.
Até pouco tempo atrás, este tipo de tradução era realizado através de pacotes de software especializados, relativamente inacessíveis. Posteriormente, a era do Tradutor Google democratizou o acesso a traduções idiomáticas com um certo nível de qualidade.
A atual geração dos LMMs (grandes modelos de linguagem) porém, elevou esta tarefa a um novo patamar, incorporando além de rapidez, a capacidade de interpretar e refletir nuances relacionadas ao contexto. A base de treinamento extensa trouxe para elas, além disso, a incorporação de expressões idiomáticas e até mesmo variações regionais. Ainda mais, quando a OpenAI apresentou em vídeo seu modelo GPT-4o (ômega) uma das impressionantes novidades era justamente a tradução de um diálogo, em tempo real.
Assim, a capacidade de conectar instantaneamente estudantes e educadores de diferentes culturas representa um passo importante para uma educação mais equitativa e integrada
Para uma dinâmica de educação intercultural, entretanto, a simples tradução palavra por palavra, não é suficiente. Toda língua incorpora elementos culturais, formas de compreender o mundo que não são imediatamente traduzíveis. Neste ponto, é importante frisar, a capacidade de contextualização dos chats de IA sinaliza um diferencial, ao incorporar a interpretação do que está sendo traduzido.
Mas será possível chegar a uma eliminação completa das barreiras de idioma através de um intérprete invisível que permita que todos se comuniquem em sua própria língua materna? A resposta para esta questão passa pela linguística e pela filosofia da linguagem; em termos pragmáticos, contudo, já é possível percebermos uma aproximação de universos idiomáticos e culturais diferentes através da mediação tecnológica.
Pelas lentes da cultura
Mais além da questão idiomática, a cultura também envolve crenças, valores e costumes. Algo que todo estudante de intercâmbio - ou mesmo todo turista - já experimentou é o choque cultural. Num contexto de sala de aula, por exemplo, há diferenças da forma de tratamento aos professores até as maneiras de participação em sala de aula.
Neste ponto, há tempos vemos propostas de Tutores Virtuais Adaptáveis. A ideia geral deste tipo de ferramenta é a capacidade do sistema se adaptar às características, preferências e conhecimentos prévios de um aluno individual, seja em relação aos conteúdos ou à metodologia. Ao considerar possíveis conflitos culturais - advindos de diferenças de linguagem, normas e valores culturais, religião e ética que compõe a educação intercultural - um sistema adaptativo poderia evitar constrangimentos e danos às sensibilidades culturais dos alunos, conforme propõe um projeto australiano.
Além disso, podemos imaginar sistemas que registrem e analisem como um estudante interage, para então inseri-lo num determinado contexto cultural. Por exemplo, para um aluno brasileiro nos Estados Unidos, acostumado com aulas mais expositivas, o tutor começaria assim para gradualmente inserir elementos típicos como debates e apresentações individuais. O tutor também poderia oferecer orientações contextualizadas sobre hábitos e costumes, como o costume de chamar professores pelo primeiro nome ou a percepção positiva de se fazer perguntas durante a aula.
Finalmente, embora as simulações já existissem antes do atual desenvolvimento da Inteligência Artificial, a capacidade de integrar grandes conjuntos de dados, em termos de fontes históricas, relatos pessoais e dados culturais, sinaliza uma evolução. Assim, seria possível recriar não somente a aparência, mas o "sentir" de um lugar e/ou tempo diferente do seu. Iniciativas como Croquelandia, ATL, Second China, TLCTS, BiLAT e VECTOR utilizam tecnologia de jogos 3D e técnicas narrativas para alcançar simulações detalhadas e realistas, incluindo representações de edifícios, ruas, obras de arte e vestimentas. Particularmente, a IA é utilizada para acrescentar realismo à comunicação, em termos de entonações de voz, gestos e emoção.
Mesmo não substituindo viagens reais ou encontros autênticos, as simulações podem democratizar experiências que, por questões financeiras ou geopolíticas, muitos alunos nunca teriam.
De que cultura estamos falando, afinal?
Mais além do deslumbre tecnológico dos discursos dos agentes de inovação tecnológica, precisamos analisar criticamente e reconhecer as limitações dessas ferramentas. A IA "real" é um reflexo dos dados que a alimentam e, indiretamente, dos programadores que selecionaram estes dados e desenvolveram os algoritmos que os processam. Aqui temos um paradoxo: ao tentar promover a compreensão intercultural, a própria IA pode perpetuar estereótipos e vieses.
Inclusive, a tradução em tempo real tem suas armadilhas. Há tempos os linguistas argumentam que a língua é mais do que palavras; é contexto, é história. Mesmo com a aprendizagem de máquina as traduções automáticas podem perder nuances percebidas facilmente por qualquer pessoa. Textos literários demandam além de conhecimento linguístico uma sensibilidade que a máquina ainda não foi capaz de alcançar.
Por sua vez, as simulações culturais são representações que dependem de escolhas. Quem decide quais aspectos de uma cultura são representados? As equipes de desenvolvedores do Vale do Silício de uma maneira ou outra filtram a realidade através de sua própria ótica, com o potencial de reduzir culturas ricas e dinâmicas a clichês estáticos. Imaginemos uma simulação de uma favela brasileira que foca apenas na violência, ignorando a riqueza cultural e a resiliência comunitária, por exemplo.
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Já os Tutores Virtuais Adaptáveis, apesar de suas promessas, podem reforçar normas culturais dominantes. Ao serem treinados com dados de contextos universitários ocidentais, podem inadvertidamente pressionar estudantes a adotarem comportamentos que são estranhos ou até desrespeitosos para as culturas de origem. Por exemplo, a noção de "participação" varia intensamente entre culturas; impor um modelo único é, ironicamente, um ato de insensibilidade cultural.
A ironia é que, na busca por conexões globais, podemos estar entregando o controle da narrativa intercultural as grandes empresas firmemente estabelecidas numa hegemonia cultural. Uma verdadeira compreensão cultural requer diálogo, desconforto, e sim, até mesmo conflito. A IA pode suavizar esse processo, mas também pode esterilizá-lo, removendo justamente as arestas que nos fazem crescer.
Assim, o potencial da IA de traduzir palavras, personalizar aprendizados e simular experiências precisa ser visto e praticado com olhos críticos. O risco de criação de um mundo de compreensão superficial, mediado por máquinas que pensam entender, mas apenas simulam, é real e significativo.
Como educadores, nosso desafio é duplo: experimentar inovações sem perder de vista que a essência da interculturalidade está no humano, na capacidade de se conectar, verdadeiramente, com o outro.
Momento de Reflexão
A "designer de experiências educacionais" Dani Lyra compartilha algumas orientações de como falar sobre IA com educadores:
✅ É sobre pedagogia. Sempre foi e sempre será
✅ É perigoso, então precisamos olhar bem de perto;
✅ A IA que deve chegar a nós, e não o contrário;
✅ Não podemos perder as conversas;
✅ Nossas vozes IMPORTAM;
✅ Devemos experimentar para aprender a modelar o uso bom e ético;
✅ NÃO é sobre as ferramentas. NUNCA foi.
A rápida evolução da IA na geração de imagens nos faz pensar: estamos chegando a um limite das IAs generativa ou realmente temos mais progresso adiante?
Sujando o Macacão
Para ser preciso, realizei este experimento pensando mais na ética de pesquisa. A ideia veio através de um artigo no qual os autores discutia as implicações éticas da IA generativa em publicações acadêmicas. Um dos riscos assinalado pelos autores era a fabricação de dados de pesquisa.
Então lá vou eu, testar uma entrevista sem a necessidade de entrevistar uma pessoa na vida real. Rápido, prático e totalmente fraudulento. Mas por isso mesmo queria experimentar a possibilidade, para avaliar o risco.
Porém, o resultado foi nada menos que desastroso, como podemos perceber. E de fácil compreensão: o registro que eu buscava não possui suficientes dados digitalizados para fornecer o treinamento da IA. Para ela, é algo que não existe e a melhor aproximação é este discurso estereotipado e totalmente distante da realidade.
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