IA na Educação antes das IAs generativas
Os debates que ChatGPT e afins despertaram não são nada novos
Bem-vindos a mais uma edição da IAEdPraxis, sua fonte de informação para explorar os caminhos da Inteligência Artificial aplicada à Educação.
Nesta semana, vamos abordar a Inteligência Artificial na Educação antes do advento da IAs generativas como o icônico ChatGPT.
IA em Foco
Por Marcelo Sabbatini
Desde novembro de 2022, com o lançamento mundial do ChatGPT, a Inteligência Artificial se tornou um objeto de discussão por parte de todos aqueles envolvidos de alguma forma com a produção de conhecimento. Mas antes deste uso público e massivo das IAs generativas, qual era o debate sobre a IA na Educação?
De fato já havia uma discussão significativa sobre os potenciais impactos disruptivos do conjunto de tecnologias conhecidas como "inteligência artificial" (IA) em diversos setores da sociedade, com atenção especial para o campo educacional. Particularmente, pelo que me lembro, o tema me chamou a atenção com a alegação de que teríamos uma nova classe de pessoas na sociedade a partir do desemprego estrutural, os "inúteis", segundo as palavras do historiador Yuval Harari, em 2018.
Nesta época, a tecnologia cada vez mais deixava de ser um elemento de filmes de ficção científica para se tornar uma realidade, causando impactos econômicos, sociais e políticos. E também já assumiam tarefas de alto nível cognitivo, como a tomada de decisões complexas e a criação de produtos culturais, pondo em cheque o trabalho realizado unicamente por seres humanas, envolvendo criatividade, sensibilidade, etc.
Diante do tom alarmista, incluindo as preocupações sobre o futuro do trabalho humano frente às capacidades crescentes dessas tecnologias - recordando, ainda num período pré IA generativa - comecei a me interessar pela IA aplicada à Educação (IAEd). Esta, "uma área de pesquisa multi e interdisciplinar, pois contempla o uso de tecnologias da IA em sistemas cujo objetivo é o ensino e a aprendizagem”, segundo a definição do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), no relatório técnico que identificava suas tendências no período de 2017 a 2030, publicado também em 2018.
Mas assim como hoje, o que se falava e se discutia implicava num “considerável mal-entendido a respeito do que a IA pode e não pode fazer, resultando em expectativas infladas e no risco de que os usuários possam atribuir”, conforme um sucinto guia publicado pela Educase em 2017 e que destacava aplicações como tutoria personalizada e sistemas adaptativos. E deste então já se citava os dilemas no que diz respeito à privacidade, transparência de uso, necessidade de regulação e de uso ético, incluindo a violação de propriedade intelectual para o treinamento dos modelos algorítmicos .
Aproveitando um período de licença-capacitação (e coincidindo com o momento de isolamento pandêmico), realizei então uma pesquisa buscando investigar como os meios de comunicação estavam pautando a discussão e direcionando a percepção pública da IAEd e seu impacto no campo educacional. Através de mais de 90 textos publicados em revistas e jornais, tanto no Brasil como no exterior, generalistas ou especializados, pude identificar algumas tendências.
A Inteligência Artificial irá substituir os seres humanos? E como essa nova tecnologia irá afetar o ensino superior e a dinâmica nas salas de aula?
Um exemplo do "gancho" de tom emocional frequentemente utilizado pelos meios de comunicação para capturar a atenção do leitor.
Num sentido de suas aplicações, a IAEd foi apontada como ferramenta de apoio à gestão escolar, auxiliando estudantes em suas trajetórias acadêmicas, incluindo a seleção e admissão universitária e o combate à evasão escolar. A IAEd também foi vista como auxílio para o desenvolvimento de material didático, avaliação e individualização e personalização do ensino por meio de sistemas adaptativos e de tutoria inteligente.
Outros usos mencionados incluíam o reconhecimento facial, o monitoramento de emoções, a promoção do engajamento estudantil, o suporte à meta-aprendizagem, a aprendizagem de idiomas e questões de interculturalidade e de inclusão educacional.
Especificamente em relação à docência, a IA emergiu como uma possível ferramenta de apoio aos professores, com potencial para liberar rotinas e tarefas administrativas, auxiliar na formação e avaliação docente, e até mesmo suprir a falta de professores em algumas situações, embora com ressalvas sobre a completa substituição dos profissionais.
E logo, pensando no sistema educacional mais amplo, a IAEd foi retratada como um recurso para embasar políticas educacionais, promover a integração curricular, reduzir custos e aumentar a eficiência e qualidade.
No entanto, também foram levantadas preocupações sobre a falibilidade dos sistemas de IA, a necessidade de pesquisa aplicada rigorosa, de validação dos modelos, da consideração de potenciais vieses. Questões de privacidade, ética e vigilância tecnológica foram levantadas, numa abordagem crítica.
Assim, o amplo leque de possibilidades e desafios relacionados à incorporação da IA na educação, desde então, abrangia aspectos pedagógicos, operacionais e sistêmicos, exigindo avaliação criteriosa de seus riscos e benefícios.
Deste breve rememoração da situação da IAEd, destaco dois pontos:
As aplicações da Inteligência Artificial na Educação são vastas e, de certa forma, a IAGenerativa baseada em modelos de linguagem natural pode esconder o potencial de ação da IA mais "tradicional", sistemas especialistas não acessíveis ao público e frequentemente desconhecidos deste. Se considerarmos o caráter "opaco" desta tecnologia, associada à plataformização promovida pelas edtechs, corremos o risco de ter a IA implementada sem um debate amplo e uma avaliação de seus efeitos.
Como praticamente toda a história da tecnologia educacional, as IAs generativas não surgem de um vazio. Pelo contrário, possuem uma trajetória e uma descendência. Da mesma forma, os debates que este tipo de tecnologia, a exemplo da privacidade e do uso ético, possuem uma historicidade que não podemos ignorar.
IA em Ação
A escassez de motoristas de ônibus no início do ano letivo levou à administração escolar de Colorado Springs, nos Estados Unidos, a otimizar as rotas de transporte através de um sistema de IA, reporta a CBS. O resultado? Protegeu empregos e economizou melhores de dólares no orçamento.
A OpenAI aparentemente revelou sem querer (ou deliberadamente vazou) que iniciou o treinamento do sucessor de sua principal criação, chamado GPT-5 ou um nome ainda a ser definido. Em um post sobre seu novo Comitê de Segurança, a empresa mencionou que estava trabalhando em sistemas que levariam ao "próximo nível de capacidades em nosso caminho para a AGI" (Inteligência Geral Artificial). Os analistas da indústria preveem que ainda deve demorar meses até que o modelo esteja pronto, mas que este buscará estabelecer uma nova fronteira em relação a sua capacidade de processamento.
E uma notícia diretamente do passado, de quando as IAs generativas ainda não estavam no radar do público: a rede privada Laureate, atuante no Ensino Superior através de marcas como FMU e Anhembi Morumbi teve revelado seu uso de software de inteligência artificial para a correção de provas escritas, sem que fosse informado os estudantes desta substituição de professores. A notícia levou à crítica, por parte dos alunos, da falta de transparência e de um possível prejuízo à qualidade da avaliação de suas produções acadêmicas com a correção automatizada.
IA em Prática
Na perspectiva da "IA antes do GPT", seu uso na analítica de dados (big data) já vinha sendo apontado como uma das principais tendências. Mais por uma perspectiva institucional e gerencial, o estudo de caso apresentado pela Universidade Árabe Aberta (AOU) junto com a ferramenta IBM Watson Analytics ilustra este tipo de aplicação.
O objetivo foi identificar os fatores por trás das taxas de evasão, retenção e progressão dos alunos, um grande desafio, considerando as diversidades culturais dos oito países atendidos pela instituição. Segundo o relato, indicadores-chave de desempenho acadêmico forma relacionados ao desvio padrão das notas, país de origem e nível do curso, estabelecendo um "Fator de Risco do Aluno". A partir desta identificação, foram direcionadas ações como cursos preparatórios e melhorias das instalações.
Contudo, para termos um contraponto, este tipo de uso pode esconder pontos problemáticos, como uso de dados enviesados, concepções limitadas de Educação incorporadas aos sistemas e uma visão reducionista, com enfoque nas ramificações econômicas de uma tecnologia que inclusive pode não ter base objetiva ou científica. Essas são as observações de um estudo realizado por Perrotta e Selwyn sobre o uso de aprendizagem de máquina para a predição do desempenho acadêmico.
Prompt da Semana
No polo oposto ao big data, as dificuldades associadas à evasão escolar podem e devem ser abordadas a partir do plano individual. Um prompt relativamente simples pode ajudar educadores a lidarem com alunas e alunos em situação de risco, a partir de suas dificuldades encontradas em sala de aula. Acesse em nossa biblioteca de prompts.
Momentos de Reflexão
Primeiramente, quanto disso é "hype" (exagero)? Em segundo lugar, o que isso pode fazer de forma útil e realista na Educação? E, em terceiro lugar, talvez o mais importante, quais são os potenciais aspectos negativos?
Poderia ser uma citação dos dias atuais, abordando ChatGPTs e afins. Mas o questionamento de Martin Weller sobre a realidade, usos, riscos ética da IA na Educação vem lá do ano 2018.
Devem os robôs substituir os professores?
O título livro de Neil Selwyn lançado em 2019 já questionava o papel crescente da inteligência artificial (IA) nos sistemas de ensino. Ao questionar quais aspectos do trabalho docente teriam mais sentido serem automatizados, o pesquisador australiano já colocava o dilema da IA tornar o trabalho dos professores mais gratificantes, ou pelo contrário, de forçá-los a tarefas cada vez mais mecanizados.
Selwyn enfatiza que ao intitular seu livro com "deveriam" em vez de "poderiam" buscou deslocar o debate para o universo dos valores e da política - lembrando que a integração de qualquer tecnologia na sociedade deve ser encarada como uma escolha, e não uma inevitabilidade tecnológica.
Pessoa 1: Você já descobriu como a IA vai impactar nosso negócio?
Pessoa 2: Estou trabalhando nisso.
Texto na tela do computador:
Como a IA impactará nosso negócio?
Há muitas maneiras pelas quais a IA pode impactar...
Coloca lá o ChatGPT: como você irá impactar a profissão docente? Só uma sugestão…
Sujando o Macacão
Publicado na revista Com a Palavra, o Professor, Fabiano Parolin Sant´Ana, Irani Parolin Sant´Ana e Claudinei de Camargo Sant´Ana nos relatam "Uma utilização do ChatGPT no ensino". Os professores utilizaram a ferramenta de IA para o planejamento e execução de atividades de sala de aula no curso de Licenciatura em Matemática da UESB, associando-o a softwares como SuperLogo, Geogebra, Scratch e planilhas eletrônicas.
Algumas considerações desta experiência "mão na massa":
Houve divergências na formulação das questões por parte do GPT, dificultando a reprodução exata do resultado dos prompts.
Refinar os prompts mostrou-se essencial; quanto mais exato e claro, melhor a resposta.
O ChatGPT apresentou tanto propostas inadequadas quanto respostas plausíveis em diferentes solicitações. Entretanto, foi capaz de auto-avaliar suas produções, de forma similar à percepção dos alunos.
Como conclusão, os autores vislumbram um impacto positivo em termos de economia de tempo, análise de dados e no auxílio a professores. Mesmo que no atual momento seja prematuro falar de uma suposta capacidade "mudar a Ciência e a Educação".
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